terça-feira, 13 de dezembro de 2016

TEATRO RÁPIDO – BRASIL 1



A cena se passa em uma pensão familiar (todos ali são de uma mesma família). Há pessoas que moram em cima e embaixo do apartamento dos donos da pensão (na verdade não são donos, mas agem como se fossem). O

 garoto está na sala ouvindo música. O Tio entra.

TIO - Luís, preciso ter uma conversa séria com você.

LUÍS – O que houve, Tio?

TIO – Ontem você comeu a cobertura do bolo de chocolate que a sua Tia fez?

LUÍS – Ontem? Ontem? Não. Acho que não.

TIO – Mas viram você comendo...

LUÍS – De qual bolo o senhor está falando?

TIO – Não se faça de desentendido. O bolo de chocolate que a sua Tia fez.

LUÍS – É, ontem ela disse que iria fazer um bolo de chocolate. Mas eu não comi.

TIO – Você tem como provar que não comeu?

LUÌS – Como que é????

TIO – Você tem provas concretas de que não comeu o bolo?

LUÌS – Como posso comprovar uma coisa que não fiz? Que tipo de prova o senhor quer?

TIO – Luís, você está me tirando do sério!

LUÍS – Tio, eu não comi o bolo. Mas seu eu tivesse comido, assumiria. Acho que nem aguento comer um bolo inteiro.

TIO – Não foi inteiro. Foi um pedaço. Um pedaço da cobertura.

LUÍS – O senhor tem alguma prova de que eu fiz isso?

TIO – Eu não preciso de provas para saber que a culpa é sua. Mas, para seu governo, sim eu tenho provas.

LUÍS – Uma foto, um vídeo?

TIO – Nada disso.

LUÍS – Achou mancha de chocolate na minha roupa?

TIO – Não.

LUÍS – A minha boca está suja de chocolate?

TIO – Sim, está.

Luís olha-se no espelho.

LUÍS – Não, esta mancha não é do bolo. Um amigo que me deu um doce. Aliás essa mancha nem é de chocolate. É de morango.


TIO – Não é chocolate?

LUÍS – Veja o senhor mesmo.

Luís limpa a mancha perto da boca.

LUÍS -  Veja é vermelha e o sabor é de morango. Quer provar – diz oferecendo um dedo.

TIO – Não! Claro que não. De jeito algum quero me envolver nessas sujeiras dos seus amigos.

LUÍS – Mas meus amigos são também amigos dos seus filhos: Miguel e Renato.

TIO – Não misture as coisas nem as pessoas.

LUÍS – Que se dane. Pronto o caso está resolvido. O senhor não tem provas que eu comi o bolo. A mancha no meu rosto era de morango e não chocolate.

TIO – Calma, mocinho! Eu não disse que essa era a prova. As provas são outras.

LUÍS – Que provas?

TIO – A vizinha ai da frente.

LUÍS – Ela me viu comendo o bolo?

TIO – Ver? Não. Ver ela não viu.

LUÍS – Então como ela pode dizer uma coisa dessas?

TIO – Ela ouviu de outra pessoa que você comeu o bolo.

LUÍS – De quem?

TIO – Da mãe dela.

LUÍS – A mãe dela me viu comendo o bolo.

TIO – Ver? Não, ela não viu. Mas soube por outra pessoa que você comeu o bolo.

LUÍS – Isto está se tornando repetitivo e cansativo. Quem, afinal de contas, me viu comendo o bolo?

TIO – A mãe da vizinha ouviu da vizinha aqui do lado direito que você comeu o bolo.

LUÍS – Ela viu?

TIO – Também não. Ela soube quando encontrou o Cunhado que queria oferecer um pedaço de um bolo de chocolate que ele dizia ser do bolo de chocolate que sua Tia fez.

LUÍS – E o que ele fazia com o bolo que a Tia fez.

TIO – Nada. Ele não estava com o bolo. Ele falou na intenção que a vizinha do lado direito quisesse comprar. Então ele iria propor comprar mais barato da sua Tia e revender para ela.

LUÍS – E como ele soube do bolo que a Tia fez?

TIO – A sua Tia foi ao mercado. Pelos ingredientes que pegou, a moça do caixa perguntou se ela pretendia fazer um bolo de chocolate.

LUÍS – Onde eu entro nessa história?

TIA – Você está mais encrencado do que pensa, rapaz. A sua Tia disse que, ela pretendia fazer um bolo de chocolate. A moça sugeriu que ela levasse chocolate granulado para a cobertura.

LUÍS – O que é que eu tenho haver com isso?

TIO – Calma que eu te explico. Com o que eu vou falar agora você não terá escapatória e terá de assumir.

LUÍS – Diga.

TIO – A sua Tia disse para a moça que não iria levar o chocolate granulado porque você, entendeu bem?, porque VOCÊ LUÍS sugeriu que sua tia fizesse a cobertura com um creme de chocolate com avelã.


LUÍS – Não me lembro disso.

TIO – Quer dizer que sua Tia é mentirosa.

LUÍS – Eu não disse isso.

TIO – Quer dizer que todo mundo é mentiroso: Sua Tia, a vizinha da direita e o cunhado dela, a vizinha da frente e a mãe dela, a moça do caixa. Todos mentem, menos você.

LUÍS – Calma, Tio. Não é assim também! Sabe, puxando pela memória eu me lembro que quem sugeriu isso para a Tia foi um amigo meu... Eu só estava do lado.

TIO – Um amigo? De novo?

LUÍS -  Não tenho culpa de ser bem relacionado...  Mas o que tem o fato de eu sugerir a cobertura com o outro fato de eu comer o bolo.

TIO – A SUA TIA DISSE QUE FOI VOCÊ QUEM SUGERIU A COBERTURA.

LUÍS – Tudo bem, tudo bem, eu posso até ter sugerido. Mas entre sugerir e comer um pedaço da cobertura do bolo... não vejo ligação.

TIO – Luís, não queira me fazer de idiota. Para que você iria sugerir a cobertura se não fosse para comer?

LUÍS – Eu posso até ter pensado em comer o bolo...

TIO – Finalmente admite!

LUÍS – Não estou admitindo nada. Eu apenas sugeri e sai. Cheguei em casa só hoje. E não há mais bolo algum. Nem vi como ficou o bolo.

TIO – Então por que a caixa disse ao cunhado da vizinha da direita que a sua Tia iria fazer um bolo para você comer?

LUÍS – Eu não sei.

TIO – E por que ele foi sugerir que a vizinha da direta comprasse um pedaço do bolo que sua Tia fez para você?

LUÍS – Não tenho a menor ideia! Você disse que ele queria ganhar algum dinheiro vendendo pedaços de bolo.

TIO – Então me diga, qual o motivo que fez a vizinha da direita contar para a vizinha de frente que a sua Tia fez um bolo para você comer a cobertura?

LUÍS – Seu eu disser que estou cada vez mais entendendo menos, o senhor acredita?

TIO – Não entende, não é? Calma, estamos chegando no senhor. Explique uma coisa: por que uma mãe... as mães sempre estão acima de qualquer dúvida, por que uma mãe contaria a sua filha que a uma certa Tia fez um bolo para um certo sobrinho comer a cobertura?

LUÍS – Qual a sua opinião?

TIO – Minha opinião é uma só. Minha opinião é de que ela disse porque isso por ser essa a verdade.

LUÍS – O senhor andou bebendo, Tio?

TIO – Quem bebe aqui é você! Não se esqueça disso.

LUÍS – Pode deixar que não me esqueço! Aliás, tô precisando tomar umas pra ver se entendo alguma coisa disso tudo que o senhor falou. Tchau.

Luís levanta-se e sai da sala ao mesmo tempo em que sua Tia entra pelo outro lado.

TIA – De novo implicando com o garoto?

TIO – Eu sei que ele comeu aquele bolo.

TIA – Desse jeito logo ele se muda daqui.

TIO – Meu sonho é colocar ele e aquela companheira dele para fora daqui.

TIA – A companheira dele veio para cá democraticamente.


TIO – Democraticamente nada. Eu votei para ela não ficar.

TIA – Mas a maioria escolheu a permanência dela.

TIO – Isso é culpa do pessoal lá de cima. Uns idiotas!

TIA – Olha lá como fala deles!

TIO – A casa é minha e eu falo como eu quiser.

TIA – A casa não é sua, é de todos. E vou te dizer uma coisa se não fossem todos os moradores dos outros andares trabalharem e darem quase todo o dinheiro para nós, não sei como estaríamos.

TIO – Não fazem mais que obrigação! Bando de vagabundos! Não sei como permito que gastem todo o dinheiro deles conosco. Fazer o que? Nem todos podem ter pensão na França ou na Suíça.

TIA – Não sei o porquê fala assim. Seus filhos, Miguel e Renato, são mais vagabundos que eles e você não pensa em se livrar deles. Pior dá a eles uma vida de luxo e luxúria.

TIO – Você fala como se não fossem seus filhos também.


TIA – E não são mesmo. Você se esquece que eles são filhos seus com aquela moça que usa farda. Nossa que horror de mulher, não deixa ninguém falar, só ela.

TIO – Você também tome cuidado. Não me perturbe muito, senão trago ela de volta e você retorna ao seu posto de empregada muda, sem salário nem aposentadoria.

TIA – Isso é chantagem! Tá bom eu me calo sobre isso.

TIO – Não se cale. Diga. O Luís comeu a cobertura do bolo, não comeu?

TIA – Não.

TIO – Não de não comeu?

TIA – Não, é “não” de não digo.

TIO – Por favor diga.

TIA – De jeito algum.

TIO – Se você disser o que sabe, eu te compro um micro-ondas novo.

TIA – É sério isso?

TIO – Seríssimo.

TIA – Escreva essa promessa num papel e assine.

O Tio escreve e assina. Entrega o papel para a Tia.


TIO – Pronto. Agora diga.

TIA – O bolo de laranja, O Miguel comeu sozinho. O bolo de limão, o Renato acabou com ele. Aquele bolo enorme de abacaxi com ameixa, o cunhado da vizinha da direita levou daqui e não sei onde o guardou ou o que fez com ele. A mulher do cunhado, a irmã da vizinha da direita é que foi vista desfilando com um grande pedaço de bolo de abacaxi com ameixa na mão.

TIO – Isso não me interessa. Quero saber se o Luís comeu ou não um pedaço da cobertura do bolo de chocolate.

TIA – Para quê?

TIO – Assim posso expulsá-lo daqui.

TIA – Você também vai expulsar todos esses que comeram bolo?

TIO – Não, só o Luís. Estou me lixando com esses outros comedores de bolo. Se comeram é que são mais espertos que os outros. Parabéns para eles. Vou até dar uma festa para comemorar a esperteza deles.

TIA – Oba, festa! Vai chamar todo mundo?

TIO – Você é idiota? Claro que não. A festa será apenas eu, você, o Miguel, o Renato e os amiguinhos deles. Agora conta, o Luís comeu ou não comeu a cobertura do bolo de chocolate.

TIA – Você quer a verdade?

TIO – A mais pura verdade.

TIA – Não. Ele não comeu!

TIO – Como assim ‘NÃO!”?

TIA – O Luís até comentou que gostaria do bolo. Mas ele saiu antes do bolo ficar pronto.

TIO – Mas ele comeu quando voltou?

TIA – Também não. Quando terminei o bolo e o levei inteiro para a moça do mercado e deixei com ela.

TIO – Por quê?

TIA – Porque quando eu falei do bolo ela ficou curiosa, além disso o Miguel e o Renato Já haviam comido um bolo inteiro cada um. Satisfeito agora?

TIO – Vou te comprar uma geladeira se você disser que o Luís comeu um pedaço da cobertura do bolo.

TIA – Mas e “a mais pura verdade” onde fica?

TIIO – Certas horas “a mais pura verdade” só atrapalha a nossa vontade.

TIA – A geladeira pode ser tríplex?

TIO – Pode!

Cai o pano.