terça-feira, 29 de setembro de 2020

MANIFESTE-SE INERTE - dorival valente



A vida está confusa e não é de agora. Não queiram jogar a culpa apenas no terrível vírus mundial. O problema é mais antigo!

Acho que não demos conta que, lentamente (suponho), uma mudança começava. Ao percebermos (apenas alguns já perceberam ou todos?) o estrago já era enorme... e ainda aumenta.

Eu sempre me senti um peixe fora do cardume, mas talvez seja o tempo de perceber que estar fora do grupo e, embora distante, nadar para o mesmo destino significa também fazer parte. Eu sentia um incômodo, ralhava para meus espelhos, gritava rouco para poucos, escrevia para apenas uns tantos. Isso, de certa forma, por ser mínimo é também um outro jeito de calar.

Esse é o mal que falo: o nosso silêncio!

 Falamos demais em redes sociais com inúteis verbetes que são mais ecos do que gritos. Lemos normas de condutas e aceitamos. Seguimos cartilhas de mordaças e tabuadas subtrativas. O silêncio que menciono aqui não se trata da falta de som. Aliás, estamos barulhentos demais; como demais são todos os nossos maus vícios. O silêncio é da tradução dos nossos pensamentos.

Dos Nossos Pensamentos.

As pesquisas na internet formam as opiniões e deformam pensamentos. Os protestos são atualmente traduzidos como “notas de repúdio” jamais lidas. Muitos acreditam que Revolução é eleger a oposição. As oposições políticas hoje são um filho “menos mau” do mesmo clã.

As famílias da comunicação proíbem manifestações contrárias! E nós, dignos e honrados cidadãos, que zelam pelo nome limpo e o zeloso cumprimento das obrigações; que procuram olhos que nos vejam como bons; que sucumbem palavras e ideias em prol do bem viver; deixamos morrer a rebeldia. Pelos dedos desta nossa geração deixamos escapar a indignação, a discordância, a relutância, a ânsia de viver.

Somos o pássaro na mão e não os que voam. Sobrevivamos, pois, calados! Alheios a tudo que nos oprime e deprime. Sejamos como todos e paguemos, sorridentes (é para isso que servem os dentes?) tudo que nos é imposto. Neste mundo sem manifesto, o silêncio (dizem os prudentes) vale ouro e ninguém quer morrer pobre.


Inerte

 

Abriu a porta

Estava deitado

Não me levantei

Rodou os olhos por tudo

Não me importei

Pediu um cigarro

Não fumo

Pediu uma bebida

Não bebo

Abriu meu pessoa

Não li

Pegou do chão o computador

Empoeirado

Por tempos intactos

Falou das manchetes da internet

Ignorei

Não curti

Nem compartilhei

Citou os esportes

Não me mexi

Deixou todas as letras

E todos os sites

Perguntou da família

Não sei

Invocou o amor

Nem respondi

Decidiu que eu tinha medo 

Calei sem concordar

Ou admitir

Quis acender a luz

Está queimada

Cantarolou

Fiz-me de surdo

Impaciente gritou

Pôs-se em pé

Fez pirueta

Esmurrou a mesa

Sentiu falta de ar

Queria abrir a janela

Está emperrada

A tudo isso

Abstive-me

Sequer observei

Se narro é porque

De alguma maneira que não sei

Eu sei

Irritada

Falou as verdades que acredita

E os palavrões que

Segundo crê

Vestem bem em mim

Mantive-me nu

Saiu batendo a porta

Sem me deixar vestígios

Nem sequelas

Não sorri

Nem me frustrei

Permaneci inerte

Inerte

Ante à vontade de viver.

 

terça-feira, 14 de julho de 2020

PREFÁCIO DE "MATAR O MÁRIO"




Trocadilhos a parte, é preciso esclarecer que esse nome; prefácio, não condiz com a responsabilidade da ação. Apresentar uma obra para os leitores conduz a uma responsabilidade desafiadora e, ao mesmo tempo, causa uma certa ansiedade. Quando o autor é amigo de infância e alguém que você tem muita admiração, aí a situação fica ainda mais complicada. Mas, aceito o desafio, o melhor a fazer é encarar a tarefa com honra e torcer para não frustrar a expectativa. 
O que me deixa mais confortável é saber que, como já citado, a amizade duradoura também ajudou a acompanhar a trajetória e, não sem um pouco de inveja, a capacidade do autor de interagir com as palavras como se elas fossem alguém que gostaríamos de namorar; ou esganar. O Valente consegue transitar entre a prosa e o verso com qualidade exemplar. É um artesão da literatura. Conduz o texto de forma fluída, leve e com um toque de ironia que, ao leitor desatento, pode passar desapercebida no início, mas que aos poucos vai sendo desnudada pela linguagem simples e enxuta. O carinho com que transforma os escritos em objetos únicos é apaixonante.
O livro Matar o Mário é mais um desses objetos literários. O conto é uma daquelas narrativas em que o leitor fica curioso só de ler o título e começa a entrar na trama sem se aperceber. É como se fosse um personagem oculto, um álibi do anunciado desde o início.
Essa teia vai se desenrolando num ritmo angustiante, com toques suaves de ironia e humor. Então, o melhor a fazer é degustar a narrativa e acompanhar o destino de Mário em mais uma obra dentro das "HISTÓRIAS DO ARTESÃO DA LITERATURA”.

Cezar Luiz de Souza

sábado, 25 de janeiro de 2020

SÃO PAULO


(Explicação antes de você ler: Segue uma poesia, ou um conto, ou uma crônica, ou algo indefinido e repetido para uma cidade que é confusa. Por isso segue o texto sem quase pontuação. Os únicos pontos que achei merecidos foram os pontos finais!)

São Paulo
São Paulo é bonita
São Paulo é bonita como uma casa
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida.

São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro.

São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e
janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis.
São Paulo é bonita como uma casa em um
condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam.
Adicionar legenda
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro e não são ouvidos.

São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro e não são ouvidos porque o som dos carros e todos os outros veículo impedem.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros
cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro e não são ouvidos porque o som dos carros e todos os outros veículo impedem da mesma forma como está impedida a imagem dos funcionários.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro e não são ouvidos porque o som dos carros e todos os outros veículo impedem da mesma forma como está impedida a imagem dos funcionários que cumprem seu verbo e fazem tudo funcionar.
São Paulo é bonita como uma casa em um
condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro e não são ouvidos porque o som dos carros e todos os outros veículo impedem da mesma forma como está impedida a imagem dos funcionários que cumprem seu verbo e fazem tudo funcionar mas vivem em um quintal esquecido.
São Paulo é bonita como uma casa em um
condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro e não são ouvidos porque o som dos carros e todos os outros veículo impedem da mesma forma como está impedida a imagem dos funcionários que cumprem seu verbo e fazem tudo funcionar mas vivem em um quintal esquecido longe da sala e da biblioteca distantes da cozinha depois da lavanderia e além da lixeira.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e
janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro e não são ouvidos porque o som dos carros e todos os outros veículo impedem da mesma forma como está impedida a imagem dos funcionários que cumprem seu verbo e fazem tudo funcionar mas vivem em um quintal esquecido longe da sala e da biblioteca distantes da cozinha depois da lavanderia e além da lixeira onde cantam a beleza da cidade concretada de incertezas mas que é bela como toda dissimulada simulação da natureza.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro e não são ouvidos porque o som dos carros e todos os outros veículo impedem da mesma forma como está impedida a imagem dos funcionários que cumprem seu verbo e fazem tudo funcionar mas vivem em um quintal esquecido longe da sala e da biblioteca distantes da cozinha depois da lavanderia e além da lixeira onde cantam a beleza da cidade concretada de incertezas mas que é bela como toda dissimulada simulação da natureza e encanta aos olhos dos turistas.
São Paulo é bonita como uma casa em um condomínio fechado coberto com um telhado cinza e janelas que mostram um belo jardim com piscina aquecida e flores de jardineiro iguais as outras casas que estão invisíveis atrás dos visíveis muros cinzapichados onde pássaros cantam enjaulados pedindo socorro e não são ouvidos porque o som dos carros e todos os outros veículo impedem da mesma forma como está impedida a imagem dos funcionários que cumprem seu verbo e
fazem tudo funcionar mas vivem em um quintal esquecido longe da sala e da biblioteca distantes da cozinha depois da lavanderia e além da lixeira onde cantam a beleza da cidade concretada de incertezas mas que é bela como toda dissimulada simulação da natureza e encanta aos olhos dos turistas que dizem por porque ouviram e costumam sempre concordar que é bonita a São Paulo para se olhar.



segunda-feira, 16 de dezembro de 2019

GAROA - Dorival Cardoso Valente


Quando se encontraram, na Rua do Sem Querer, ela não era mais menina, ele não envelhecera tanto. Os corpos trazem histórias diferentes da alma.
O que terá sido?
O que teria sido?
Perguntas que não se fazem sozinhas, mas se adivinha.
O trivial contar dos dias, das vitórias, de uma ou outra batalha perdida.
Os ouvidos ouvem. A boca responde. Mas os olhos...
Os olhos não buscam palavras, não precisam delas.
As mãos buscam a bolsa, o bolso. Controlam os braços.
A ponta do pé esquerdo dele chuta o chão. O pé direito finca-se no solo como um esporão. Não vai nem vem.
O pé direito dela apaga o inexistente cigarro e seu calcanhar circula como uma brincadeira infantil. O pé esquerdo finca-se como um esporão no solo. Não vai nem vem.
Os pêlos eletrizados.
O coração, quem diria?, acelerado.
A respiração ritmada.
As consciências prejudicadas, um pouco afetadas, ainda controlam a exposição dos desejos.
O tempo mudou.
Uma garoa. 
Coisa pouca. 
Umas gotas mal caídas do céu dispersam o encanto para suas opostas direções e encerram a história.
Uma garoa.
Coisa pouca.
Umas gotas mal caídas do céu.
FIM




segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

LIBERDADE DE IMPRENSA (nenhuma novidade)- Dorival Valente



Capela de São Miguel Aracnjo - SP
Em 1988 trabalhei em uma agência bancária em São Miguel Paulista (cidade de São Paulo). Havia um jornalzinho interno, editado por um funcionário antigo do lugar.
Um pouco depois da minha chegada esse funcionário saiu. Eu não sei como a responsável pela agência sabia que eu gostava de escrever. Fui convidado para assumir a redação do tal jornal. Aceitei acreditando que teria liberdade para escrever.
Minha primeira matéria foi sobre o aumento das mensalidades das escolas particulares. Muitos funcionários, na tentativa de criar mais oportunidades para seus filhos, eram clientes dessas instituições educacionais.
Acreditando que o jornalismo se baseia em isenção de opinião e demonstração de vários pontos de vista (nunca fui jornalista, nem estudei jornalismo, era apenas um amante dessa arte), montei um texto que demonstrava os problemas que o aumento causaria, como também a necessidade das escolas manterem seus bons professores e sua boa estrutura. Tentei não deixar transparecer minha opinião, apenas queria distribuir elementos para discussão. É claro que havia outras matérias sobre aniversários e casos engraçados e corriqueiros da agência.
O texto foi elogiado pela moça que me convidou. Antes de imprimir, porém, era necessária a aprovação do gerente da agência... Algumas escolas particulares eram correntistas daquela agência... 
As vezes que perguntei sobre a a aprovação recebia como resposta um cara fechada e o silêncio.
Aquela edição não foi impressa e nunca mais (até eu sair do banco) não se falou mais de jornal interno na agência de São Miguel Paulista.
Vivemos (não sei desde quando) uma época de muitos filtros.

Cada um desses filtros elimina o que considera tóxico.
Por quantos filtros passou a notícia que você lê/ouve/vê?
Por quantos filtros passam as suas opiniões?
PS: este texto passou pelos filhos do Artesão da Literatura que quer um maior número de acessos em sua página e uma maior venda de seus livros!


sexta-feira, 6 de setembro de 2019

CLEPSIDRA - DCV



É tanto tempo
Que o tempo me espera
Quanto tempo
É o tempo
Que eu espero o tempo.
Os dois em um aguardar
Sem tempo de parar

Talvez nossa dupla não saiba
Que o tempo
Aguardado
Já pode ter passado
Despercebido
Disfarçado
E nos deixou
Guardados
No aguardar do tempo.
06/09/2019

terça-feira, 20 de agosto de 2019

O Pedro e as pedras - DORIVAL CARDOSO VALENTE



Cidade de fato pequena; não tanto que nela não coubessem lá seus miseráveis, além dos seus milionários e um resto que não sabe que está longe do além e, também, teme e se nega estar perto de lá.
É fato que as pessoas surgem naturalmente como a terra sob os pés. Depois de surgidas é que se criam ou produzem dentro dos padrões patrocinados e, assim, se tornam o que são. Massa, depois de moldada e assada, dificilmente toma outra forma. O que acontece, mais do que esperam os patrocinadores, é que nem sempre o ceramista acerta a mistura e, ao invés de maleável, a matéria fica mais mole ou mais dura. O mesmo acontece com o pão. Um padeiro descuidado altera o sal, o gosto, o forno, a leveza e torna indisponível o produto para o consumo geral da população patrocinada.
Pedro é tido na cidade como um desses pães perdidos que não servem nem para pombos; uma argila misturada e moldada errada; um engano do Mestre. Todo preconceito cabia nele. Não espere que eu relacione esses preconceitos, você já os sabe, talvez até os utilize. A prova disso é que, provavelmente, você já pensou em três ou quatro características de Pedro.

Um dia, por um motivo fútil (como fútil é todo motivo) a cidade chegou a um limite e não suportou mais Pedro. Gritos tapas, socos, chutes, ofensas, cotoveladas presenteavam o corpo da massa mal moldada. Algumas pessoas utilizavam as mãos (que sempre recusaram carinho ou cumprimento ao Pedro) para atingir, com uma raiva desconhecida, a pele da personagem tão maltratada desta história.
Pedro não é um mártir ou um herói. Pedro tem medo. Fugiu como um covarde. Correu como nunca havia feito. E, também de forma inédita, a cidade corria atrás dele. Impossibilitados de alcançá-lo, começaram a jogar pedras que acertavam as costas, as pernas, a bunda, a nuca, o pescoço, a cabeça de Pedro.

Um buraco serviu como abrigo. Protegido quase por completo, Pedro recebia a dor de apenas uma ou outra pedra atirada com mais habilidade. Cansou, assim como se cansaram as pessoas da cidade. Todos, inclusive o alvo, foram dormir.
A madruga despertou a fome em Pedro. Umas árvores com frutos estavam perto. Ele subiu em uma pequena e comeu. Atento, o olhar voltado para a cidade percebeu uma multidão se aproximando. Não demorou muito e as primeiras pedras começaram a chover. A vítima correu para sua toca, assustado.
As pessoas da cidade não foram até onde ele estava. Olhar para Pedro já causava asco nelas, imagine vê-lo assim, ensanguentado. Ficavam a uma distância segura e jogavam as pedras que a pedreira descartou, as panelas que enferrujaram, o resto dos vasos que quebraram, um sofá destroçado. Houve até aquele, que imitando macaco de zoológico, tirou de si mesmo a munição e atirou no coitado.
Quando o céu escureceu e a cidade foi dormir, Pedro procurou por mais das frutas. Comia e olhava para a cidade. Não conseguiria viver assim por muito tempo, precisava de proteção. De quem?
Assim se repetiram alguns dias. Aos poucos a quantidade dos atiradores de pedras foi diminuindo, mas não acabou. Alguns jovens e atléticos estudantes transformaram a atividade de jogar pedras em Pedro em um esporte. Os mais habilidosos jogam, os mais estudiosos orientavam, os que não eram nada disso torciam por este ou aquele.

Pedro pensava como era possível uma pedreira dispensar tantas pedras boas.
Os governantes e os donos da cidade (que mandavam nos governantes) não apareciam nunca. A princípio, Pedro pensou que isso seria uma coisa boa, que os milionários iriam convencer o povo a parar com aquilo. O tempo mostrou que ele estava enganado.
O que os donos da cidade faziam enquanto o povo estava a atirar-lhe pedras?
Devem aproveitar o tempo para construir falcatruas, meditou.
Em tempos difíceis, a solução pode aparecer como uma palavra no meio de uma frase: Construir.
Tantas pedras em volta de Pedro que seria possível fazer um muro. E foi isso que ele começou a fazer.
Quando a população chegou na manhã seguinte e viu aquele murinho de poucos centímetros.
Estranharam! Murmurinhos sobre o murinho diziam que o governo mandou construir aquilo para que ficasse definido o limite máximo para que as pedras fossem jogadas e, assim, tornar mais justa a competição.
A cada noite, antes de iniciar o trabalho, Pedro subia na árvore mais baixa que ainda havia frutos. Comia sempre assustado e atendo, olhando para a cidade. O muro, a cada jornada, crescia de altura ou de largura.   
Na mesma proporção em que o muro de pedras crescia, a competição ficava mais difícil e o número de pedras atiradas diminuía. Pedro menos atingido, mais forte e protegido, trabalhava com mais vontade. Mais algumas noites e o muro estava tão alto e largo que nenhuma pedra mais vinha de além da muralha.
Desmotivado pelo muro, o povo se esqueceu de Pedro e, consequentemente, de lhe jogar pedras.
Um medo ou um susto não passam tão rápidos como as dores de um machucado.
Pedro não sossegou enquanto não murou toda a cidade. Um muro sólido.
Outra habilidade, que a necessidade o fez adquirir, era de subir em árvores. As frutas, agora, só nas mais altas. Um pouco mais seguro, Pedro subia, mesmo de dia, sempre com o olhar atento para
cidade.
Foi por curiosidade que um dia ele, no alto da árvore mais alta, olhou para onde sempre estava desvirado. Percebeu a amplitude do lugar e muitas, muitas, muitas outras distantes cidades. Ficou com medo de que nelas também houvesse pedreiras.
Desceu rápido e se escondeu no buraco.
Não havia mais pedras para protegê-lo de todas as cidades.
E as frutas das árvores acabaram.
A fome, a sede, o frio, a solidão... Tantas necessidades fizeram Pedro criar coragem e caminhar.
No caminho que não sabia, torcia para encontrar um lugar onde as pessoas fossem todas feitas de massas variadas. E que não o entendessem como uma argila que deu errado.
20/08/2019